Parecer técnico destaca valores histórico e arquitetônico do espaço; governo diz que projeto continua
Guilherme Seto - Wálter Nunes para Folha de S. Paulo em 20/02/2020 (
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A Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico, órgão técnico do governo de São Paulo, elaborou parecer em que defende a abertura de estudo para tombamento do Complexo Esportivo do Ibirapuera, na zona sul da cidade. O documento surge como ameaça à expectativa da administração João Doria (PSDB) de concedê-lo à iniciativa privada.
O parecer elaborado por arquitetos que compõem o corpo técnico do UPPH ressalta, segundo a
Folha apurou, os valores histórico, arquitetônico e esportivo do complexo, e, por isso, defende abertura de estudo para tombamento, com destaque para o ginásio, o estádio de atletismo (velódromo) e o conjunto aquático do complexo.
O parecer ainda será votado pelos conselheiros do Condephaat, órgão dedicado à preservação do patrimônio histórico estadual ao qual a própria UPPH está vinculada, em data a ser agendada. Devido à importância dada pelo governo do estado ao tema, a votação pode acontecer logo após o Carnaval.
Os conselheiros decidirão, em um primeiro momento, se aprovam a realização de estudo para avaliar o possível tombamento do complexo. Caso votem em favor da abertura dos estudos, o imóvel já passará a ser considerado protegido e intervenções que possam descaracterizá-lo estarão proibidas —o que tende a desanimar possíveis interessados na concessão.
O governo do estado diz que o projeto de concessão continuará sendo desenvolvido.
Logo no início de seu mandato, em abril de 2019, Doria promoveu mudanças no Condephaat por meio de um decreto. Os representantes das diferentes instituições que compõem o conselho, como universidades, associações de classe e profissionais de notório saber, passaram a ser escolhidos pelo governador a partir de lista tríplice encaminhada por cada um dos órgãos à Secretaria de Cultura e Economia Criativa.
Antes disso, as instituições tinham autonomia para decidir quais seriam seus representantes.
À época, a Justiça de São Paulo expediu liminar para suspender o decreto, atendendo a pedido do Ministério Público, que apontava desequilíbrio pró-governo na reforma que o tucano promoveu no conselho. Doria reduziu o corpo total de 30 para 24 conselheiros, e diminuiu de 14 para 5 assentos aqueles ocupados por representantes de universidades paulistas.
O governo do estado, que posteriormente conseguiu a derrubada da liminar, argumenta que há paridade entre os representantes da sociedade civil, 12, e os do governo, em igual número.
Pouco menos de um ano após virar alvo de acusações de ter sido moldado para atender os interesses da gestão Doria, o Condephaat se verá na posição de discutir um tombamento que pode prejudicar os planos do governador de conceder à iniciativa privada o Complexo Esportivo do Ibirapuera.
Principal equipamento do complexo esportivo, o Ginásio do Ibirapuera começou a ser construído em 1953, no bojo dos eventos comemorativos do Quarto Centenário da cidade, em 1954. A efeméride foi encarada pela elite paulista como a chance de mostrar que a capital era moderna e cosmopolita em diferentes frentes: indústria, artes e, também, esportes.
Nas artes plásticas, por exemplo, aconteceu a chamada Exposição Histórica de São Paulo, com obras de Tarsila do Amaral e Clóvis Graciano feitas por ocasião das celebrações.
O autor do projeto do ginásio foi Ícaro de Castro Mello (1913-1986), engenheiro que havia disputado a Olimpíada de Berlim, em 1936, como atleta do salto com vara. Mello ficaria conhecido como o maior especialista em estruturas esportivas do país ao aliar suas experiências como atleta e como engenheiro. Além do ginásio, Mello também projetou o velódromo do Ibirapuera, inaugurado em 1954.
Tanto o ginásio como o velódromo e o conjunto aquático (projetado pelo arquiteto Nestor Lindenberg, que buscou inspiração no trabalho de Mello) tornaram-se referências da vertente brutalista da arquitetura paulista.
O brutalismo enfatizava a busca pela "verdade estrutural das construções", com a exposição das estruturas e dos materiais utilizados, sem ornamentações consideradas desnecessárias. O concreto bruto, sem revestimento, e as estruturas aparentes são marcas brutalistas nas edificações do complexo esportivo composto por ginásio, velódromo e conjunto aquático do Ibirapuera.
Para além das contribuições histórica e arquitetônica para São Paulo, o parecer da UPPH aponta a importância dos serviços esportivos prestados pelo espaço. O alojamento do complexo recebe jovens que têm alimentação e treinamento no local.
Atualmente, o complexo abriga o Centro de Excelência Esportiva do estado, antes chamado Projeto Futuro. Criado em 1984, dele surgiram medalhistas olímpicos como Maurren Maggi (ouro no salto em distância) e os judocas Tiago Camilo (prata e bronze), Felipe Kitadai (bronze), Rafael Silva (dois bronzes) e Henrique Guimarães (bronze).
Marcos Moliterno, representante do Instituto de Engenharia de São Paulo no Condephaat, diz acreditar que o conselho votará a favor de que se estude o tombamento do complexo. Ele vê um problema posterior, no entanto.
"Temos propriedades que há 20 anos estão em estudo para tombamento e não há pessoal para dar continuidade no processo. Não há definição sobre o tombamento ou não no local, e enquanto isso a propriedade permanece nesse limbo", afirma. Nada impede, portanto, que o mesmo aconteça com o complexo do Ibirapuera.
Moliterno defende o estabelecimento de um limite de dois ou três anos para que se tome uma decisão em relação ao tombamento ou não de qualquer espaço.
Ainda assim, ele vê com simpatia a possibilidade de que o complexo do Ibirapuera seja tombado.
"É muito interessante arquitetonicamente, e tem um valor histórico muito grande para São Paulo."
O projeto de concessão da gestão Doria foi aprovado pela Assembleia Legislativa em junho do ano passado e prevê a instalação de uma nova arena multiuso com capacidade para 20 mil pessoas para realização de eventos esportivos, culturais e religiosos no local. O ginásio tem espaço para 10 mil pessoas.
Há, hoje, a previsão da demolição de estruturas para a construção dessa nova arena, o que pode se tornar proibido com a aprovação de estudos para tombamento.
"A pista vai ser demolida? Provavelmente. Se for, vamos dar outra [para treinarem]”, disse à
Folha o secretário de esportes de São Paulo, Aildo Ferreira Rodrigues, em outubro de2019.
A ideia é a de que a concessão abranja todo o complexo esportivo do Ibirapuera, que tem 105 mil metros quadrados e inclui ginásio, velódromo, conjunto aquático, ginásio Mauro Pinheiro, Palácio do Judô, quadras de tênis e prédio administrativo.
A empresa vencedora administraria o espaço por 35 anos, com conclusão das obras em até cinco anos a contar do início da concessão. Ela conseguiria lucro com as receitas acessórias, como ingressos e lojas de alimentação.
O cronograma atual do governo do estado prevê a publicação do edital em junho e a apresentação das propostas em outubro de 2020.
Em nota, a Secretaria de Governo da gestão Doria diz que a concessão do complexo é um dos 21 projetos que compõem a carteira de projetos de concessão do governo.
"A estruturação do projeto atende a todos os requisitos e prazos legais exigidos e assim continuará sendo desenvolvido", afirma.
Também diz que busca a transformação do complexo em um espaço moderno, "com evolução tecnológica dos equipamentos esportivos e de lazer, atendendo a padrões internacionais, atualmente inexistentes em São Paulo."
A pasta conclui o texto ao acrescentar que o processo incluirá consultas e audiências públicas antes da publicação do edital.
Em complemento, a Secretaria de Cultura, órgão do qual o Condephaat faz parte, afirma que "atualmente não há óbice para a concessão do imóvel" e que "o processo se encontra em fase de distribuição para conselheiro relator a ser determinado e, portanto, está indisponível para vistas."